Um paralelo entre Nietzsche e Dostoiévski.


Será que a razão é mesmo superior à emoção? Devemos sempre ouvir mais a razão? Certamente muitos filósofos e escritores já debateram sobre essas questões, mas hoje buscaremos falar mais especificamente sobre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844–1900) e o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821–1881), através das obras “Crepúsculo dos ídolos”(Nietzsche) e “Memórias do Subsolo”(Dostoiévski). Mas antes de falar das obras em si, me sinto na obrigação de vos dar uma breve apresentação de cada um.


Friedrich Nietzsche (1844–1900)

Basicamente, Nietzsche desafiou a moralidade tradicional, declarou a “morte de Deus” e defendeu a criação de novos valores através da vontade de poder. O objetivo aqui não é fazer uma biografia dele, por isso explorarei apenas o que nos motiva a estudá-lo e o que ele quis dizer com sua famosa frase “Deus está morto”.

Por que estudar Nietzsche?

Nietzsche é um filósofo um tanto quanto peculiar e polêmico, por expressar suas opiniões contra a religião e outras crenças e elementos populares. No entanto, independentemente de seu posicionamento acerca de suas opiniões e obras, ele é um clássico, e ninguém se torna um clássico por acaso. Primeiramente, suas obras e filosofia são fundamentais para o entendimento da filosofia contemporânea, sem ele você terá dificuldade até mesmo de entender nosso mundo moderno. Além disso, uma das obras tratadas neste artigo (Crepúsculo dos Ídolos) é excelente para iniciantes em filosofia, afinal de contas ele é um ótimo escritor, fala de assuntos extremamente relevantes e seus livros são relativamente pequenos. E, por fim, ele é extremamente relevante para nosso atual contexto cultural e global todo.

“Deus está morto e fomos nós quem o matamos”

Tal ideia foi escrita por ele no livro “Assim falou Zaratustra”, mas, o que ela realmente quer dizer? Ela não se refere diretamente à “pessoa” de Deus, e sim aos seus valores e moral envolvidos na religião. O que o autor procura dizer é que antigamente, mais especificamente na Idade Média, o homem era cheio da religião, tudo era relacionado a igreja e a Deus, ou seja, Ele era vivo lá. Atualmente, a ideia de Deus é algo que vem perdendo forças, seja pelo avanço da ciência ou por diversos outros motivos. Vale ressaltar, também, que Nietzsche não diz isso em bom-tom, pois querendo ou não a religião e seus valores não são tão ruins assim e de certa forma exercem um papel na sociedade, o filósofo também não diz que por hoje termos “trocado” Deus pela ciência estamos melhores que antes, ambos são ruins de acordo com ele.


Fiódor Dostoiévski (1821–1881)

Dostoiévski é célebre por explorar a complexidade da alma humana, moralidade e religião em obras como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázov. Provavelmente já deve ter ouvido falar dele, já que suas obras estão na “moda” em algumas redes sociais.

Por que estudar Dostoiévski?

Ouso dizer que, com o passar dos dias, Dostoiévski e suas ideias ficam cada vez mais importantes e relevantes ao mundo contemporâneo. Suas obras exploram temas como existencialismo e a condição humana, moralidade e ética, sofrimento e redenção, alienação e sociedade, etc. Seus escritos se tornaram de suma importância para o entendimento de impasses que muitos de nós sofremos, como crises de identidade, conflitos morais, busca por sentido, etc. E como se não bastasse, é famoso por antecipação de conceitos psicanalíticos e da psicologia profunda, devido à profundidade psicológica das personagens e ao seu estilo narrativo, com o uso de monólogos interiores, fluxo de consciência, estrutura não linear e complexidade narrativa.

“Dostoiévski é o único psicólogo com que tenho algo a aprender”

Acredite ou não, mas essa frase foi dita(escrita) por Nietzsche, em sua obra “Crepúsculo dos Ídolos”. Embora nunca tenham se encontrado pessoalmente, Nietzsche dedicou considerável atenção a Dostoiévski, reconhecendo nele um profundo entendimento da condição humana. No entanto, essa admiração vinha acompanhada de críticas e divergências filosóficas significativas.

Nietzsche via a moral cristã, a qual o escritor russo era adepto, como uma expressão da “moralidade dos escravos”, considerada por ele como limitadora e contrária ao florescimento do indivíduo forte e autônomo. Exploraremos mais suas críticas à religião na seção “Crepúsculo dos Ídolos” e lá poderá tirar suas próprias conclusões…


Crepúsculo dos Ídolos

Último livro escrito pelo autor enquanto lúcido, busca apresentar as principais ideias de sua filosofia. Este não é seu único título, também podendo ser chamado de “A filosofia a golpes de martelo”, o qual não deve ser mal compreendido. No início da obra, o autor explica o significado pretendido de “martelo”, o qual se assemelha a um diapasão (Instrumento metálico que permite identificar se algo é oco — ou falso, em sua filosofia — ou não), permitindo que se descubra se os Ídolos são reais ou falsos. Um fato interessante a se notar a respeito do uso do martelo, é que o autor percebe que quanto mais “oco” o deus for, mais “fiéis” ele pode ter, independentemente do quão irreal ele seja.

Seu título é inspirado em uma obra de seu amigo Wagner, onde “Crepúsculo” se refere ao fim e ídolos (vale notar que é o mesmo termo usado no antigo testamento da Bíblia para deuses ou entidades falsas, ou seja, além do “Deus verdadeiro” judaico-cristão) aos deuses ou elementos religiosos/metafísicos.

Capítulo II: “O problema de Sócrates”:

Nietzsche critica Sócrates e sua dialética, por ele valorizar a razão acima de tudo e abandonar praticamente o valor real dos sentidos/instintos humanos. Sei que isso pode parecer estranho à primeira vista, já que vivemos em uma cultura que foi fortemente influenciada pela filosofia grega pós-socrática, mas confie em mim, no final tudo vai fazer sentido! Antes de Sócrates, o grego ainda valorizava o belo, os sentidos e os instintos humanos, ou seja, eles não repreendiam os sentimentos em favor da razão, porém entendiam sua importância e naturalidade do ser humano, eles reconheciam que o ser humano não era racional, como os filósofos pós-socráticos mais tarde diriam.

Nietzsche diz que Sócrates era feio, um monstro, e que até os estrangeiros diziam isso dele, porém, é claro, seus amigos, já acostumados com sua aparência, achavam isso uma barbaridade, até o próprio Sócrates admitia isso. Portanto, como uma forma de vingança, ou ressentimento, como o próprio autor se refere, ele cria a dialética, ele introduz o uso da razão.

O autor do livro afirma que a dialética é a última forma de defesa, que só se usa quando não se tem mais opções de defesa, como exemplo, Nietzsche sugere que Sócrates, consciente de suas limitações físicas e da hostilidade que enfrentava, utilizou a dialética como um meio de superar essas desvantagens e se afirmar intelectualmente. Em vez da força ou da posição tradicional, ele recorreu ao poder da argumentação lógica para conquistar influência e respeito.

Mas qual o problema de se usar a razão acima de tudo, isso não é certo? Não exatamente, Nietzsche vem nos dizer que a razão não é tudo nessa vida. O que Sócrates, os estoicos, religiosos e praticamente todos os filósofos pós-socráticos pregavam/pregam é que devemos reprimir a “carne”, que não devemos dar lugar aos nossos instintos e emoções e buscar usar a racionalidade no lugar deles.

Mas existe um problema aí, os seres humanos não possuem tal poder de autocontrole, portanto ele vai “engolindo” suas vontades, emoções, instintos, sentidos até que uma hora ele explode, e o que temos com isso? Agressões domésticas, estupros, assassinatos, brigas no trânsito, etc. Todos esses sentidos reprimidos uma hora ou outra voltariam.

Porém, Nietzsche não está dizendo que devemos fazer tudo que queremos ou temos vontade, mas que devemos não controlar tanto nossos sentidos, ou seja, temos que ter alguma forma correta de amenizá-los, não simplesmente reprimi-los, devemos saber o lugar, a hora e o modo certo de usá-los. O autor usa de exemplo a arte para que “descarreguemos” nossas emoções e vontades acumuladas. Também é falado que aqueles que absorvem ou “engolem” seus sentidos e emoções, na verdade, são doentes fisiológicos (por exemplo, depressivos).

Capítulo IV: “Como o ‘Mundo Verdadeiro’ finalmente se tornou fábula”:

Neste capítulo, o autor divide em 6 parágrafos numerados, com parênteses em seus finais, os comparando ao processo de nascer de um novo dia. Ele começa criticando a ideia do “Mundo das Ideias”, criado principalmente por Platão. Mas o que é exatamente isso? O mundo das ideias diz que esse mundo que vivemos é falso e que existe outro mundo em que tudo é verdadeiro. De acordo com Platão, tudo é criado primeiro no “Mundo das Ideias” e nós somente vemos a sombra da verdade, não a ela em si. Nietzsche diz que isso tudo é uma mentira, e que inclusive essa ideia de “Mundo das Ideias” não combina com um mundo democrático nem com a concepção de verdade de Nietzsche.

O céu cristão pode ser também entendido como um “Mundo Ideal”, já que para alcançá-lo você deve seguir uma série de dogmas e preceitos aqui neste mundo “falso e passageiro”, e o mesmo acontece fora da religião.

No primeiro aforismo do capítulo, Nietzsche se refere ao “Mundo das Ideias” como algo alcançável ao sábio, ao devoto e ao virtuoso. Ou seja, para se alcançar a “verdade” você precisa fazer e se dedicar a uma série de coisas que, por serem consideradas a única verdade, não são nada democráticas, visto que, em uma democracia, todos teriam direitos iguais e, portanto, opiniões e concepções de verdade válidas também.

A verdade para Nietzsche é algo perspectivo, ou seja, cada um tem a sua. Alguns chamam isso de relativismo, mas não é, pois, para ser relativista, é necessário que exista verdadeiro e errado e Nietzsche dá a entender que as coisas não são bem assim. Leia o que ele diz no último aforismo do capítulo:

“6. Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? o aparente, talvez? Não! Com o mundo verdadeiro, abolimos também o mundo aparente! (Meio-dia; momento da sombra mais breve; fim do longo erro; apogeu da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA [começa Zaratustra]”

O que ele quis dizer nesse aforismo é que ao abolirmos a ideia de mundo das ideias (o “verdadeiro”), também abolimos o mundo aparente (o supostamente falso), portanto a concepção de verdadeiro e falso foi instaurada por Platão e para Nietzsche, ela deve ser abolida por se tratar de uma certa ilusão. Um exemplo para ilustrar é: se a Igreja ou o Cristianismo acabarem, acaba-se junto a eles a ideia de pecado, inferno, céu, etc. Aliás, para Nietzsche, isso nem deveria ser prometido, mas é.


Memórias do Subsolo

Introdução

Se Nietzsche critica o excesso de racionalidade na filosofia ocidental, Dostoiévski, por sua vez, apresenta um personagem que ilustra as consequências desse racionalismo exacerbado na vida cotidiana.

Considerada por muitos como o precursor do existencialismo — filosofia que se preocupa com a angústia da existência, com a experiência do ser humano, sempre com uma sensação de confusão —, Memórias do subsolo é composto por duas partes, sendo um livro contra o racionalismo. A primeira (O subsolo) é densamente filosófica e a segunda parte (Sobre a neve molhada) é mais narrativa, como se fosse uma aplicação prática da teoria apresentada na primeira parte.

O protagonista, cujo nome nunca é revelado, é um ex-funcionário público russo que vive de uma pequena herança, suficiente para sua sobrevivência, mas sem luxo. Ele narra suas memórias aos 40 anos, relembrando episódios de sua juventude.

Parte 1

O homem do subsolo inicia a obra dizendo ser mal, desagradável, que sofre do fígado. É bastante descontente com sua vida, se declara um tanto quanto solitário, mas ainda assim escreve sobre suas memórias. Sua vida é lembrada por si com amargura, por vezes se sente superior aos seus leitores, leitores esses que nada mais são do que pressuposições, como se fossem seu público.

Uma de suas principais características é a tendência a sempre tornar tudo um paradoxo, por exemplo, ele diz que não escreve para ninguém, mas tem seu público, diz que é superior aos outros, mas ocasionalmente se rebaixa.

O contexto histórico dessa obra se passa na Rússia do século XIX, onde um livro intitulado ”O que fazer” escrito por Nikolai Tchernichevski, que estabelecia padrões para a construção de uma sociedade racional, equitativa que cada pessoa aja em seu próprio benefício, compartilhando uns com os outros, fora publicado. Assim que Dostoiévski lê tal livro, sente que o autor é ingênuo, observou que diferentemente do que era defendido pelo escritor, de que “a luta para maximizar o prazer e a diminuição da dor é o que dá tônica para o ser humano”, ou seja, como se o ser mais irracional do ser humano pudesse ser enjaulado e educado, ele acredita em uma dimensão de que o ser humano não é, antes de tudo, “uma tecla de um piano”, e ainda que fosse posto em um teclado de piano, de uma maneira ou outra iria se rebelar, seja em prol de sua liberdade ou se mutilando para afirmar que está vivo para além de um “cálculo matemático”. E é justamente esse o motivo de o homem do subsolo se autoafirmar e ser uma pessoa paradoxal. Ele nos diz que a história humana é tudo, menos razoável, que ela é um banho de sangue, onde ele identifica uma tendência de extravasamento ou “ejaculação” de uma violência, de um caráter próprio, da vontade própria da personalidade. Por mais que ainda possa negar essas afirmações no futuro, o que interessa é que essa vontade seja própria e não ditada por um cálculo exato.

Por vezes é referido como um advogado da barbárie, do irracionalismo, das tendências mais mórbidas do ser humano, mas esse não é o nosso foco aqui. O que ele nos mostra é a dificuldade em se criar uma sociedade com novas bases de “igualdade, liberdade e fraternidade” em relação à proveta de laboratório que esses revolucionários pensavam. Ele está polemizando com isso para dizer que a sociedade que fosse criada deveria constituir algum tipo de “válvula de escape”, para os seres humanos poderem se exprimir a partir de si, caso contrário, se houvesse uma regulamentação estrita, se houvesse uma demanda de perda da própria personalidade em prol de um todo, que não fosse determinado por todos e cada um de nós, mas sim apenas pelos próprios mandatários, poderia acabar em profundo autoritarismo, já que haveria uma distância enorme entre o indivíduo e a coletividade que essa civilização quer construir.

Parte 2

Intitulada de “A propósito da neve molhada”, possui episódios vivenciados em sua juventude, exemplificando o que foi escrito na primeira parte. Conforme ele vai contando essas histórias, percebe-se que tudo isso foi remoído durante 20 anos e que ele até tentou ser um homem de ação nelas, inclusive chegando a se esforçar para fazer parte de um grupo.

Uma divisão entre “homem de ação” e “homem inteligente”(o qual, de acordo com ele, é seu grupo) é feita por ele. O homem de ação é alguém que faz o que precisa ser feito, é prático, funciona bem em sociedade, no entanto, é também um perfeito peão de fábrica. Mas esse não é o caso dele, visto que ele é o homem que pensa, que analisa tudo ao seu redor, mas sua situação, principalmente financeira, o limita e o faz não querer fazer nada. Como russo, ele também se sente acima de outras nacionalidades que o rodeiam e que são parte da cultura daquela época.

A primeira história contada diz sobre como ele se envolvia em confusões apenas para sentir algo. A título de exemplo, um dia estava saindo de sua casa, passeando pela noite, indo praticar suas libertinagens, até que passa por um homem que é arremessado por uma janela fora. Logo ele pensa em como seria maravilhoso ser arremessado janela afora e tentar conseguir esse fato, sem sucesso. Depois conta sobre um rapaz do qual não gostava e começa a segui-lo, descobrir onde ele mora, anda, etc. E frequentemente se pega imaginando o momento em que irá irritá-lo e apanhará, porém, nada de fato acontece.

A segunda história que nos é contada relata como ele se autoconvida para uma visita a um de seus amigos. Assim que chega na casa desse “amigo”, percebe que também havia outras visitas lá, e elas estavam combinando uma celebração para outro amigo, que não estava presente. Todos esses amigos em questão se conheceram na escola, onde estudaram juntos, e esse rapaz para quem a festa estava sendo preparada era alguém que o homem do subsolo detestava pelo simples motivo de ele ser um menino muito bonito, cheio de amigos, agradável, mas que nunca havia feito nada de errado contra à nossa personagem. Ele logo se convida para participar dessa festa, dando um dinheiro que nem sequer possuía, com a esperança de as pessoas reconhecerem sua “superioridade”, quando, na verdade, sua presença era insignificante. Em determinado momento, ele está lá e pensa se isso seria companhia para ele, e começa a se arrepender e se sentir superior, novamente.

Na terceira história, enquanto pratica suas libertinagens, é atendido por uma jovem Liza, a qual ele diz algumas verdades, “acabando” com aquela moça. Toda essa angústia, ele tentava calar com a leitura. Ele diz que todos temos um homem do subsolo em nós, o difícil é controlá-lo. A questão é que o subsolo dele tomou conta de sua vida, e ele se acomodou nesse estado. “A moça é elaborada como uma herdeira das virtudes cristãs que Dostoiévski identificava no povo simples, em oposição ao niilismo moral que o escritor acusa nas classes instruídas […] Esse traço faz dela a única figura de fato positiva da história, o que facilita tomá-la como uma espécie de antípoda moral e espiritual do homem do subsolo.”(Villaça, 2021).

Cuidado com os erros de interpretação.

Assim como apresentado no artigo de Davi Villaça (2021), erros de interpretação são frequentemente cometidos na leitura desse livro. A primeira delas é a de que “Estas não são apenas as palavras de Dostoiévski: são as palavras de um narrador em terceira pessoa que só se manifesta no final da história” isso é especialmente explicitado no final da novela, onde “As palavras finais da novela afirmam que a história do narrador continua para além daquilo que é registrado”. Além de que a palavra do narrador é a própria vida em andamento, em sua incompletude. Também é importante fazer a distinção entre Dostoiévski e o Homem do Subsolo, o qual é o narrador do livro, “A advertência de que o narrador não é expressão direta e simples do autor pode nos colocar no caminho correto, mas pouco faz no sentido de destrinchar o emaranhado de problemas que a personagem em si representa.”(Villaça, 2021).


O paralelo em si + Conclusão

Talvez você não tenha percebido, mas existem semelhanças entre o que Nietzsche diz em “Crepúsculo dos Ídolos” e o que Dostoiévski relata em “Memórias do Subsolo”. Vamos tentar entender o que os autores tentaram nos dizer.

A transvaloração dos valores

Assim como Nietzsche alerta, Dostoiévski ilustra a perda de certos valores com o Homem do Subsolo. “E, uma vez que essa situação está ligada justamente a um processo de modernização e de perda de valores tradicionais — aquilo mesmo que Dostoiévski desejava acusar no meio da parcela instruída da sociedade —, podemos afirmar que a narrativa do homem do subsolo é a procura pelas raízes do seu próprio desenraizamento.” (Villaça, 2021), assim como Nietzsche também diz com a frase “Deus está morto”, a qual já foi explicada no começo deste artigo.

O problema de Sócrates e do Homem do Subsolo.

Pode não se lembrar, mas Nietzsche fez algumas críticas a Sócrates que também podemos identificar no Homem do Subsolo. Para começar, ele disse que Sócrates tinha péssimas características físicas e que por vezes usava da “razão” para se sentir superior aos outros, os quais provavelmente tinham inveja, não sabemos ao certo. Da mesma forma faz o Homem do Subsolo, usando de sua “inteligência” para se destacar dos outros, como se ele fosse uma pessoa separada da sociedade, alguém especial.

No entanto, eles não possuem apenas semelhanças, mas também diferenças. Devido ao Homem do Subsolo ser alguém tão contraditório e paradoxal, ele se sente superior aos outros, da mesma forma que Sócrates, mas não valoriza tanto a razão como fazia o filósofo grego. “A razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com a razão e com todo o coçar-se. E, embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes em algo ignóbil, é sempre vida e não apenas a extração de uma raiz quadrada. Eu, por exemplo, quero viver muito naturalmente, para satisfazer toda a minha capacidade vital, e não apenas a minha capacidade racional, isto é, algo como a vigésima parte da minha capacidade de viver. Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?), enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continuará vivendo.1”(Villaça, 2021).

Dostoiévski provavelmente também compartilhava um pouco dessa opinião, pois “Para Dostoiévski, a razão é apenas uma das funções da vida humana, e por isso mesmo não consegue apresentar ou compreender toda a vida.”(Villaça, 2021).

O abandono das características e instintos do ser humano.

Outro ponto da crítica de Nietzsche é a supressão dos instintos do ser humano, fazendo este recorrer a formas de se aliviar. Da mesma forma, a personagem de Dostoiévski nos mostra essa tendência, “Numa refutação categórica de pressupostos e conclusões desse escritor, o homem do subsolo expõe o que acredita serem alguns traços humanos originários e irredutíveis: a inclinação para a imoralidade, o desejo de perseguir uma meta, mas não de alcançá-la, o apego às noções de personalidade e de liberdade — em nome das quais o homem de bom grado pode, apenas para afirmar sua vontade individual, renunciar ao bem-estar, à tranquilidade e a quaisquer outras ”vantagens” que uma utopia como a de Tchernichévski teria a lhe oferecer. Dostoiévski, evidentemente, concorda com as críticas de sua personagem”(Villaça, 2021).

O fim da fábula e da sociedade ideal.

Por fim, ainda podemos fazer uma analogia entre o “Mundo verdadeiro”, ou seja, o mundo das ideias de Platão, o qual Nietzsche “refutou”, e a sociedade ideal a qual Dostoiévski tenta lutar contra, a proposta de Nikolai Tchernichevski. Assim como o mundo das ideias não é real e nem é possível ser algum dia, da mesma forma essa sociedade ideal, baseada nos princípios de “liberdade, igualdade e fraternidade” não seria possível, pelos motivos já comentados na seção “Memórias do Subsolo” deste artigo.

Conclusão

O que podemos concluir depois de tudo isso? Que não podemos nem valorizar muito a razão e nem valorizar pouco. Devemos buscar equilibrar, para que não nos tornemos um “Sócrates” e para não deixarmos nosso subsolo tomar nossa vida para si. Além disso, devemos sempre tentar preservar nossa liberdade e não permitir que governos, nem mandatários, nos tratem como “teclas de piano”, pois, como já foi visto, em uma hora isso pode culminar em autoritarismo…

Se rejeitarmos tanto o racionalismo extremo quanto a entrega irrestrita aos instintos, como podemos encontrar equilíbrio na sociedade contemporânea?

Agora, um meme para descontrair 😂 A imagem mostra a capa do livro Notes from Underground de Dostoiévski ao lado de um Wojak melancólico. Acima dele, um balão de pensamento diz “he is literally me”, indicando uma identificação profunda e irônica com o protagonista da obra.


Referências Bibliográficas

  1. FELTRIN, Tatiana. Memórias do subsolo (Dostoiévski) 🇷🇺 | Tatiana Feltrin. YouTube, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9Wgry2nbxew. Acesso em: 30 jan. 2025.
  2. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000.
  3. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  4. VILLAÇA, Davi Lopes. Memórias do subsolo: problemas interpretativos. Revista Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 12, n. 20, p. 1-42, dez. 2021.
  5. VASSOLER, Flávio Ricardo. Resenha de Vassoler: Memórias do subsolo | Dostoiévski | Parte I. YouTube, 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EgnDyBEu4X0. Acesso em: 29 jan. 2025.
  6. TCHERNICHEVSKI, Nikolai. O que Fazer? Tradução de Angelo Segrillo. São Paulo: Prismas, 2015.

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