Por que sempre estamos cansados: o diagnóstico de Han
Quando foi a última vez que você se sentiu exausto? Provavelmente deve ter sido recentemente, e não deve ter ocorrido apenas uma única vez nas últimas semanas. Mas, se parar para observar, todos estamos assim. Isso não aparenta ser um cansaço saudável, aquele que com um final de semana de descanso se resolve, mas sim um “cansaço infinito”, você até tenta descansar, mas não consegue.
Felizmente, o filósofo e teórico cultural sul-coreano Byung-Chul Han tentou desvendar a origem dessa fadiga crônica em sua obra “Sociedade do Cansaço”. Usarei ela como base para esse artigo, mas também tentarei acrescentar alguns conceitos e insights que obtive durante a leitura de seu livro.
A Grande Mudança - Da Disciplina ao Desempenho
Em sua obra “Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão” , Michel Foucault apresenta o conceito de “sociedade disciplinar”. De acordo com ele, essa sociedade é uma nova forma de organizar o corpo social e exercer o poder que se tornou dominante na Europa Ocidental aproximadamente entre os séculos XVII e XVIII, consolidando-se no século XIX. Ela representa uma mudança fundamental em relação às formas de poder anteriores, como o poder soberano do monarca, que se manifestava principalmente através da punição física espetacular(torturas e execuções públicas, por exemplo).
Em contraste, o poder disciplinar é mais sutil, generalizado e produtivo. Seu objetivo não é tanto punir o corpo, mas sim treiná-lo, moldá-lo, otimizá-lo e torná-lo dócil e útil. Ele opera através de um conjunto de técnicas e instituições que visam controlar os indivíduos em detalhes, no espaço e no tempo.
“Não é que a modalidade disciplinar do poder tenha substituído todas as outras; mas ela se infiltrou nas outras, desqualificando-as às vezes, ou convergindo com elas […] A formação da sociedade disciplinar remete a certo número de processos históricos amplos no interior dos quais ela se inscreve: econômicos, jurídico-políticos, científicos.” (Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987., p. 177-178)
Já a sociedade do desempenho(Leistungsgesellschaft) é a forma social dominante na atualidade(final do século XX e início do XXI), que sucedeu a sociedade disciplinar. Se a sociedade disciplinar era caracterizada pela negatividade(proibições, deveres, o “não poder”), a sociedade do desempenho é marcada por um excesso de positividade(o “sim, nós podemos!”, a iniciativa, a motivação, o projeto).
O sujeito desta sociedade não é mais o “sujeito de obediência” de Foucault, moldado por instituições externas, mas sim o “sujeito do desempenho”(Leistungssubjekt). Ele se percebe livre, autônomo e responsável por seu próprio sucesso. Não é coagido por uma força externa a trabalhar ou se comportar de certa maneira; ele se auto-motiva, se auto-otimiza e se auto-explora, acreditando estar realizando seu potencial. A pressão não vem mais de fora (o patrão, o professor), mas de dentro(a necessidade de performar, de ser melhor, de alcançar mais). Não há nenhuma arma apontada para nós forçando algo, apenas a que nós mesmos nós projetamos.
“A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shoppings e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho.” (Han, B.-C. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 25)
O Sujeito do Desempenho
Provavelmente agora você deve estar começando a se identificar como um “Sujeito do Desempenho”, mas calma que ainda tem muito mais por vir…
Existencialismo
Esse excesso de positividade não é tanto assim uma novidade no sujeito do desempenho, podemos compará-lo à liberdade radical do existencialismo, especialmente o de Jean-Paul Sartre. Para existencialistas como Sartre, a liberdade é a condição fundamental do ser humano. Não temos essência ou natureza pré-definida por Deus ou pela biologia (“a existência precede a essência”). Somos radicalmente livres para escolher quem seremos através de nossas ações.
Mas essa liberdade em excesso vem com um preço: a angústia. Ela não é leve ou fácil; é um fardo pesado. Somos “condenados a ser livres”. Isso significa que somos totalmente responsáveis por nossas escolhas e por criar nosso próprio destino em um mundo indiferente. Não existe a graça de Deus vindo nos salvar, apenas nós mesmos podemos nos salvar, somente se fizermos o suficiente.
Poderíamos pensar que essa liberdade radical de Sartre é a mesma que a sociedade do desempenho nos oferece. No entanto, há uma diferença crucial. A liberdade sartreana, embora angustiante, é um chamado à criação autêntica de si em um mundo sem garantias divinas - daí a angústia perante a responsabilidade total. Já a “liberdade” da sociedade do desempenho, o “você pode tudo”, não gera tanto a angústia da escolha de quem ser, mas sim a pressão e a exaustão de ter que performar incessantemente. A responsabilidade aqui não é pela criação de sentido, mas pela otimização do desempenho. Ambas nos deixam “sem a graça de Deus”, sozinhos, mas enquanto Sartre nos confronta com o vazio da escolha, Han nos mostra esmagados pela plenitude da possibilidade infinita de fazer mais.
E é essa pressão por performance, essa responsabilidade internalizada pelo sucesso (ou fracasso), que vemos refletida diariamente em nossa cultura.
Reflexo atualmente
Talvez seja essa uma das milhares de coisas que o sujeito do desempenho enfrenta diariamente. Nós, como sujeitos do desempenho, podemos fazer o que quisermos, não temos limites. Nós vemos a ciência e a tecnologia cada dia fazendo coisas mais incríveis que antes pensávamos ser impossível, vemos influencers e bilionários ficando cada vez mais ricos, gênios cada vez mais inteligentes, etc. Ficamos com a impressão de que se eles conseguiram, nós também conseguimos. Que é tudo uma questão de querer e fazer. Só não estamos no mesmo nível deles por nossa própria culpa, porque não trabalhamos o suficiente, não estudamos o suficiente ou resumindo: não nos esforçamos o suficiente.
A partir desse ponto, adquirimos a “classe” de Senhor e Escravo, ao mesmo tempo. Nós mesmos julgamos nossas próprias habilidades, hábitos, conquistas, etc.
“O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que a exploração por outros, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado. […] A sociedade de desempenho é uma sociedade de autoexploração."(Ibid., p. 28)
Nos enxergamos como totalmente individuais(soberania do indivíduo), podemos perseguir o que quisermos, quando quisermos. Perdemos essa noção de que o outro é extremamente importante para nós. Temos amizades de utilidade apenas, competimos por atenção, como a moeda de nossa auto-estima. Passamos a ver os outros não mais como amigos e companheiros, mas sim como adversários em uma maratona que não tem fim. Iniciamos amizades baseadas no “o que você tem pra me oferecer?”. Perdemos totalmente nossa sensibilidade emocional, nos tornamos máquinas produtivas.
Redes Sociais
Aqui, as redes sociais têm um papel fundamental na motivação dessas comparações. Quando olhamos o feed do Instagram, praticamente só enxergamos tentativas de se alcançar a perfeição. Todos possuem o corpo perfeito, esposa/marido perfeito, filho(a) perfeito, emprego perfeito. Você é o único que ainda enfrenta problemas em casa e no trabalho.
É impossível não olhar para essas pessoas “falsas” sem se comparar com elas. E novamente, só não somos iguais elas, porque não fazemos o suficiente. Nós fechamos os olhos para todo o resto e olhamos apenas para os resultados, achando que tudo só depende de nós.
Pessoas são definidas por conquistas e nos comparamos com elas. Não podemos mostrar nossas fraquezas a nenhum custo, isso é coisa que somente “fracassados” fazem, algo que nós não somos. Por isso, faltam comunidades, comunhão, que compartilham das mesmas ideias e sofrimentos, sem elas problemas psicológicos graves são acarretados, como depressão, ansiedade, burnout, etc.
Caso queira se aprofundar neste tópico, recomendo o documentário “O dilema das redes”, na Netflix.
Nietzsche e a Tirania da Razão
Na obra “Crepúsculo dos Ídolos”, Nietzsche ataca ferozmente os ídolos(valores e ideias venerados) da filosofia e da moralidade ocidentais. Um de seus alvos é a supervalorização da razão, da consciência e da lógica, que ele associa principalmente a Sócrates e Platão.
Para Nietzsche, essa primazia da razão sobre os instintos, os impulsos vitais, o corpo e as emoções não é um sinal de progresso, mas de decadência. No entanto, nossa sociedade atual enxerga isso como avanço. Quantas vezes já fizemos ou vimos pessoas negando o corpo, ignorando os sentidos e sinais que nosso corpo nos dá, em favor de algo mais “produtivo”.
Isso, por si só, já implica uma falha lógica, pois nosso corpo necessita de equilíbrio, principalmente entre a Razão e a Emoção. Enquanto um estiver sendo supervalorizado, não agiremos adequadamente, já que, por exemplo, essa tirania da razão pode levar ao ressentimento contra a vida, o niilismo. Mas, se o sujeito do desempenho quer performance acima de tudo, ele deveria saber que enquanto continuar como uma “máquina racional” não conseguirá atingir a plenitude, certo? O que enxergamos é o contrário, não damos o devido valor à emoção, ao corpo.
“Ter de combater os instintos — essa é a fórmula da decadência: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto."(Nietzsche, F. Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, § “O Problema de Sócrates”, 11.)
Passamos a enxergar a produtividade como sentido de vida, a valorizar mais a quantidade de trabalho do que a qualidade(outra falha lógica). Assim como Nietzsche aponta, essa negação dos instintos e do corpo em favor de uma razão focada apenas na produção, manifesta-se de forma gritante na maneira como o homem contemporâneo lida(ou melhor, não lida) com necessidades humanas fundamentais. Perdemos a capacidade para o descanso genuíno e até mesmo para o tédio contemplativo.
Se estiver interessado no tema, tenho um outro artigo escrito especificamente sobre esse livro do Nietzsche, nele faço um paralelo existencialista entre Nietzsche e Dostoiévski. Clique aqui para ler.
A Sociedade do Desempenho na Educação
Finalmente, analisaremos os impactos em escolas e universidades antes de partirmos para as possíveis soluções. Antes de começarmos, quero apresentar algumas frases de dois cientistas e gênios que muito admiro, Albert Einstein e Richard Feynman:
“A escola falhou comigo, e eu falhei com a escola. Ela me entediava. Os professores se comportavam como Feldwebel (sargentos). Eu queria aprender o que queria saber, mas eles queriam que eu aprendesse para a prova. O que eu mais odiava era o sistema competitivo lá, especialmente os esportes. Por causa disso, eu não valia nada, e várias vezes sugeriram que eu saísse. Era uma escola católica em Munique. Eu sentia que minha sede de conhecimento estava sendo sufocada pelos meus professores; as notas eram a única medida deles. Como um professor pode entender a juventude com um sistema assim? A partir dos doze anos, comecei a suspeitar da autoridade e a desconfiar de professores.” — Albert Einstein
“O poder da educação em geral é pouco eficaz, exceto nas felizes ocasiões em que ele é quase supérfluo.” - Edward Gibbon citado por Feynman em Six Easy Pieces: Essentials of Physics Explained by Its Most Brilliant Teacher (1995)
Acredito que já tenha ficado claro que a maior parte do objetivo atual da educação é de entregar diplomas e fazer com que os alunos atinjam boas notas. O amor pelo conhecimento não é mais incentivado, e sim desmotivado, já que a maioria dos alunos enxerga o estudo como um castigo e não como um prazer. Será esse nosso objetivo?
A pressão por notas, rankings, atividades extracurriculares “para o currículo” e a internalização da ideia de que o valor está no resultado mensurável colocam o aluno como sujeito de desempenho.
Um estudo mundial do Programa de Avaliação Internacional de Estudantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revelou que 56% dos alunos brasileiros entrevistados estão entre os que ficam mais estressados durante os estudos. Quando o quesito é a ansiedade na hora da prova, os alunos brasileiros ocupam o segundo lugar no ranking de 180 países, diz Ferraz Júnior em uma matéria no “Jornal da USP”.
Mas não é tarde demais, ainda existem soluções para o “sujeito de desempenho”.
Possíveis Soluções
Como é de se prever, não existem soluções rápidas e fáceis. Essa cultura já atingiu muitas esferas de nossa sociedade, ou seja, por mais que você conserte uma, a outra ainda o atrapalha. Então, quando não conseguimos mudar o meio externo com facilidade, partimos para mudanças internas, como o descanso correto.
Não há descanso para os ímpios
Já disse no começo do artigo que quando você tenta descansar, acaba não conseguindo. O motivo disso acontecer é porque você não sabe descansar corretamente. Um estudo da World Sleep Society aponta que problemas de sono constituem uma epidemia global que ameaça a saúde e a qualidade de vida de até 45% da população mundial.
Em seu livro “Por que nós dormimos” o neurocientista Matthew Walker diz que: “A dizimação do sono em nações industrializadas está tendo um impacto catastrófico em nossa saúde, nosso bem-estar, até mesmo na segurança e educação de nossas crianças. É uma epidemia silenciosa de perda de sono.”
Não vou explorar as causas exatas de por que dormimos tão mal assim, vamos nos concentrar apenas em como dormir melhor. Por sorte, Walker escreveu algumas dicas de como melhorar seu sono, ele possui um apêndice específico sobre isso, intitulado “Doze Dicas para um Sono Saudável”, aqui vão elas:
- Regularidade: Ir para a cama e acordar nos mesmos horários todos os dias, inclusive nos fins de semana. Ele enfatiza muito a importância disso para regular o relógio biológico.
- Temperatura: Manter o quarto frio, pois uma leve queda na temperatura corporal ajuda a iniciar o sono.
- Escuridão: Garantir que o quarto esteja o mais escuro possível.
- Evitar Álcool e Cafeína: Especialmente perto da hora de dormir. Ele explica como o álcool fragmenta o sono e a cafeína bloqueia os sinais de sonolência.
- Não Ficar na Cama Acordado: Se não conseguir dormir após cerca de 20 minutos, levantar-se e fazer algo relaxante em outro lugar até sentir sono novamente, para não associar a cama à frustração.
- Rotina Relaxante: Criar um ritual calmante antes de dormir (ler um livro físico, tomar um banho morno, meditar), evitando telas brilhantes.
- Exercício Físico: Praticar exercícios regularmente, mas evitar atividades intensas muito perto da hora de dormir.
- Luz Solar: Expor-se à luz natural pela manhã para ajudar a regular o ciclo circadiano.
Ademais, pode ser útil para seu descanso fazer atividades físicas constantes, evitar usos prolongados de celulares, televisão, etc.
Uma questão interessante é que Nietzsche nos diz que após a “morte” de Deus, começamos a louvar a saúde: “louvamos a saúde - ‘nós encontramos a felicidade’ - dizem os últimos homens e piscam os olhos” (Also sprach Zarathustra - Kritische Gesamtausgabe, 5ª seção, vol. 1, p. 14). Basta olhar para as academias lotadas e o comércio de wellness em grande expansão, mas ainda sim, falhamos em questões básicas da saúde, como o sono.
Penso que ao mesmo tempo que a ascensão da psicologia fez nós olharmos mais para nós mesmos, não temos refletido o suficiente sobre nós e outras coisas, nos falta quietude, tédio e contemplação.
A importância esquecida do tédio
Pode parecer estranho à primeira vista, mas o tédio e a contemplação são essenciais em nosso dia a dia. O problema é que estamos sempre tentando fugir deles, não conseguimos ficar mais sozinhos com nós mesmos. A neurociência tem explorado o que acontece no cérebro durante períodos de “não fazer nada”, tédio ou divagação mental (mind-wandering). Muitas vezes, isso está ligado à ativação da “Rede de Modo Padrão” (Default Mode Network - DMN)
Quando nossa mente não está focada em uma tarefa externa específica, a DMN se torna mais ativa. Essa rede está associada à auto-reflexão, ao pensamento sobre o futuro, à recuperação de memórias e, crucialmente, à combinação de ideias de maneiras novas, o que pode fomentar a criatividade. O tédio pode ser um gatilho para a ativação dessa rede. Sugestão de Leitura: Bored and Brilliant: How Time Spent Doing Nothing Changes Everything - Manoush Zomorodi
A neurocientista Mary Helen Immordino-Yang argumenta que o tempo de inatividade mental não é ociosidade. É durante esses períodos de aparente descanso e reflexão interna que o cérebro consolida os aprendizados, constrói significado pessoal e desenvolve o senso de self. A estimulação externa constante impede esses processos cruciais.
Isso não é algo exclusivo da ciência atual, a exemplo disso, Nietzsche escreveu: “Somente os pensamentos que nos ocorrem enquanto caminhamos têm valor.” Além do filósofo alemão, as filosofias e religiões orientais e budistas nos tem muito a ensinar neste tópico.
Primeiramente, a prática de mindfulness (atenção plena) ensina a observar os estados mentais - incluindo o tédio, a agitação ou a calma - sem julgamento e sem a necessidade imediata de “fugir” deles. Reconhecendo o tédio como uma experiência passageira, em vez de um problema a ser resolvido. Thich Nhat Hanh fala muito sobre a importância da quietude para ouvir a nós mesmos e ao mundo: “No silêncio, podemos ouvir a nós mesmos. Mas muitas vezes temos medo do silêncio, preenchemos nossa vida com ruído e atividade para não ter que encarar o que está dentro de nós.”
Muitas tradições budistas enfatizam a importância da contemplação (analítica ou simplesmente quieta) como um meio de desenvolver prajna (sabedoria, discernimento) sobre a natureza da realidade, a impermanência e o funcionamento da própria mente. Isso requer deliberadamente reservar tempo para a quietude e a investigação interna, em contraste com a ação constante. Alan Watts, filósofo que gosto muito, diz:
“Uma pessoa que pensa o tempo todo não tem nada em que pensar, exceto pensamentos. Então, ela perde contato com a realidade e vive em um mundo de ilusão.”
A sociedade do desempenho valoriza a atividade mental constante. Watts argumentava que esse pensamento incessante nos desconecta da experiência direta da vida. A contemplação e até o “tédio”(visto como uma ausência de pensamento direcionado a um objetivo) podem ser antídotos, permitindo um retorno à realidade presente.
Conclusão
Comecei falando sobre a sensação universal de cansaço, apresentei Han como o diagnosticador dessa condição, explorei a mudança da sociedade disciplinar para a do desempenho, aprofundei nas características do sujeito de desempenho e falei sobre a importância crucial do descanso e do tédio. Acho que agora é a hora da conclusão, certo?
O cansaço não é (apenas) uma falha individual, mas um sintoma profundo da “Sociedade do Desempenho”. Diante desse cenário, a pergunta que fica é: o que fazer?
Escapar completamente da lógica do desempenho pode parecer impossível, mas talvez a chave esteja na reflexão e auto-análise, assim como diz essa história sobre Buda. “Buda perguntou à esposa de um rei quem era mais querido por ela, e por mais que o rei esperasse ele como resposta, ela disse: eu mesma.” Isso não foi dito no sentido narcisista, mas sim que ela se importa consigo mesma. Talvez isso seja uma das coisas que mais nos falte nesses dias.
Essa auto-análise e autocuidado genuínos, sugeridos na história de Buda, são o oposto da lógica cruel que a sociedade do desempenho pode nos impor. Afinal, sem ela podemos cair na seguinte lógica: já que somos ferramentas defeituosas, o que fazemos com ferramentas defeituosas que não possuem reparo? Jogamos fora.
No decorrer da história muitos filósofos passaram por tormentos extremos, como prisão, tortura e execução. E se você ler seus escritos, eles dizem quase a mesma coisa: “eles podem fazer o que quiser com meu corpo, mas nunca atingirão minha mente”. Eles viam a mente como seu último refúgio. Mas se Han está certo, esse não é o caso para nós. A cultura do desempenho já controla nossos corpos e principalmente a mente, nos privando de estarmos profundamente relaxados.
Bibliografia
- FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. (Título original: Surveiller et punir: Naissance de la prison, 1975).
- HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015. (Título original: Müdigkeitsgesellschaft, 2010).
- NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. § “O Problema de Sócrates”, 11.
- HERMANNS, William. Einstein and the Poet: In Search of the Cosmic Man. Boston: Branden Publishing Company, 1983.
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- WORLD SLEEP SOCIETY. [Consultar materiais informativos ou comunicados de imprensa disponíveis no site oficial, por exemplo, relacionados ao World Sleep Day]. Disponível em: https://worldsleepsociety.org/. Acesso em: 19 de abril de 2025.
- WALKER, Matthew. Por que nós dormimos: A nova ciência do sono e do sonho. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018. (Título original: Why We Sleep: Unlocking the Power of Sleep and Dreams, 2017).
- NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Gesamtausgabe (KGW). Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1967ff. Abteilung V, Band 1, Seite 14.
- IMMORDINO-YANG, Mary Helen; CHRISTODOULOU, Joanna A.; PURI, Varsha. Rest Is Not Idleness: Implications of the Brain"s Default Mode for Human Development and Education. Perspectives on Psychological Science, v. 7, n. 4, p. 352-364, jul. 2012. DOI: 10.1177/1745691612447308. (Nota: Este é um artigo acadêmico, mas a ideia central é muito relevante)
- NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos, ou, Como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. § “Máximas e Flechas”, 34.
- NHAT HANH, Thich. Silêncio: o poder da quietude num mundo barulhento. Tradução de Mirtes Frange de Oliveira Pinheiro. Petrópolis: Vozes, 2015.
- DALAI LAMA; CUTLER, Howard C. A arte da felicidade: um manual para a vida. Tradução de Beth Vieira, Aulyde Soares Rodrigues, Carlos Afonso. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
- WATTS, Alan W. A sabedoria da insegurança: uma mensagem para a era da ansiedade. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Record, 1973